10 Abril 2023
Goste-se ou não, tenho a obrigação de apontar um detalhe que curiosamente nunca é apreciado, ou seja, que o infeliz do Gólgota era justamente de Cirene, ou seja, tratava-se, para todos os efeitos, de um imigrante, de um forasteiro, de alguém que vinha da Cirenaica, atual província de al-Jabal al-Akhdar, a 1.200 km de Jerusalém, na Líbia.
O artigo é de Stefano Massini, escritor e dramaturgo italiano, publicado por La Repubblica, 07-04-2023. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Naquele dia, Simão de Cirene passava por ali por acaso, voltando do campo, e colocaram a cruz sobre suas costas. Não nos é relatado nada mais sobre esse homem, exceto que era pai de Alexandre e Rufo, que de outra forma seriam desconhecidos.
Pois bem, em toda grande narração, há sempre espaço para um intruso, o personagem que não tem absolutamente nada a ver e que se vê arrastado por um vórtice como em um filme de Hitchcock ou dos irmãos Coen. A partir disso, decorre que esse evangélico Carneade, embora sublimado a um questionável emblema da solidariedade (ele não foi forçado?), tornou-se antes o paradigma da roleta russa que, de uma hora para a outra, pode lhe reservar a bala poupada a outros, e, assim como a passante de Baudelaire presenteava ao poeta uma embriaguez vital, assim também a interceptação de uma existência é sempre sinônimo de incógnita, para o bem ou para o mal.
Sim, sempre há um risco em abordar os outros, sejam eles quem forem. E é inesquecível aquele fragmento de Franz Kafka (em “Contemplações”, 1913) em que ele assume como regra a neutralidade existencial: exatamente como uma Suíça encarnada, Franz impõe a si mesmo nunca se deixar atrair pelo imã de quem passa a seu lado, mesmo que fosse um desesperado fraco e esfarrapado que alguém persegue gritando no meio da noite.
Tocar em quem passa a seu lado significa, sem dúvida, expor-se a um contágio, aquele contágio que a Covid tornou tangível e clamoroso, obrigando-nos a manter uma distância de segurança que é um diafragma de proteção não só biológico, mas talvez sobretudo emocional e vital.
Amaldiçoado e vilipendiado, o vírus de ex-Wuhan havia nos permitido, no fundo, legitimar uma barreira interpessoal que finalmente objetivava o individualismo radical do novo milênio, e, portanto, no fundo, no fundo, seja bem-vinda a máscara atrás da qual é possível se esconder, bem-vindo o smart working a partir da própria toca, bem-vindos os 200 cm de separação entre mim e o diferente de mim, que, aliás, é a miniatura das fronteiras fechadas, do Mar Jônico esperançosamente tempestuoso que dissuade os barcos e, por fim, do mantra “por que não ficam na casa deles?” (traduzido: por que vêm nos contagiar com sua miséria?).
Esse nosso Simão de Cirene, vice-versa, foi contagiado, e como! O calvário de outro tornou-se o seu, infectou-o, invadiu-o, talvez até o traumatizou, eventualidade que hoje se transformou em um terror apocalíptico, pois estamos convencidos de que somos criaturas de cristal em alerta perene, com sirene e luzes ligadas, muito vulneráveis, sedentas de oráculos de coaches e psicólogos on-line, dependuradas no fio de um equilíbrio interior sempre à beira de se romper devido a múltiplas fobias diversas, e, portanto, “imagine se eu vou ter espaço para carregar também a cruz alheia”.
E, neste ponto, já posso imaginar a reação impaciente de quem, lendo este retrato, achará inédito confluir sobre o abandonado Simão a herança psicológica da Covid ou até a nossa resistência em acolher quem foge da catástrofe síria, afegã e assim por diante, geolocalizando o mapa-múndi do horror. No entanto, goste-se ou não, tenho a obrigação de apontar um detalhe que curiosamente nunca é apreciado, ou seja, que o infeliz do Gólgota era justamente de Cirene, ou seja, tratava-se, para todos os efeitos, de um imigrante, de um forasteiro, de alguém que vinha da Cirenaica, atual província de al-Jabal al-Akhdar, a 1.200 km de Jerusalém, na Líbia.
Dizem os historiadores que, com alguma probabilidade, ele era um norte-africano ou um egípcio grecizado, como sugere o nome de seu filho, Alexandre (absolutamente incomum na Palestina). E aqui, poderíamos dizer, o círculo se fecha. Porque, entre as palavras mais subversivas da pregação de Cristo, estava aquela que dizia: “Eu era estrangeiro e não me acolhestes”, que soava inadmissível em uma Judeia que, teoricamente, faria empalidecer Viktor Orbán: não só os estrangeiros eram sepultados fora da cidade (o famoso Campo do Oleiro comprado com o dinheiro da traição de Judas), mas, na verdade, também era proibido por lei manter relações com eles ou cruzar sua fronteira (isso foi escrito, aliás, nos Atos dos Apóstolos 10,28).
No Calvário, porém, coincidentemente, a cruz que o condenado (sobrevivente da tortura e da flagelação) não consegue mais carregar é carregada pelos soldados sobre as costas não de um qualquer, mas de mais um “eu era estrangeiro e não me acolhestes”. Sim, eu diria que podemos imaginar melhor essa cena como Quentin Tarantino a filmaria: há uma multidão que exige sangue, há carcereiros profissionais no espancamento, há um profeta de 30 anos com o rosto inchado debaixo de uma coroa de cacos de garrafas, curvado sob uma cruz de canos de ferro soldados.
Quando ele começa a cambalear, em meio às risadas gerais, algum gênio agarra por trás o hispânico ou o negro de passagem, e está resolvido, para a alegria da Ku Klux Klan que filma de bom grado em Super 8.
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Simão de Cirene: o imigrante escolhido pelo poder para carregar a cruz. Artigo de Stefano Massini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU